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Recaída: O fracasso do tratamento?

Grande parte das pessoas que tentam largar as drogas volta a consumi-Ias depois de certo tempo. Porque isso acontece?

Parece até que é uma história já escrita. O jovem ou adulto resolve largar o vício – do álcool, da maconha, da cocaína – e começa um longo tratamento, que inclui psicoterapia e, às vezes, alguns períodos de internação. Depois de algum tempo sem “tocar” na droga, revê alguns amigos com quem costumava fumar, beber, cheirar. A tentação é grande. A motivação fica um pouco mais fraca e… pronto! Recaída.

A frustração é geral. A família sente que meses – às vezes, anos – de esforço conjunto foram jogados no lixo. o dependente imagina que é o fim da linha e que nunca vai ter forças para livrar-se das drogas. “A recaída destrói pelo menos três castelos”, conta o psicoterapeuta de adolescentes Ruy de Mathis, membro da equipe técnica e científica da Associação Parceria contra as Drogas. “o do paciente, o da família e até o do terapeuta, que também sente o peso dessa frustração”.

E por que e tão dolorosa essa nova experiência com as drogas? “Ora, a recaída, como o próprio nome diz, só acontece com quem efetivamente enfrentou um tratamento, com quem se posicionou contra a dependência em algum momento e estava, de alguma maneira, tentando acabar com ela”, explica Ruy. De fato, só se pode falar em “recaída” no caso de alguém que tenha ao menos tentado. E que tenha mantido um tempo significativo de abstinência.

Não basta, no entanto, interromper o uso temporariamente. “A parte mais difícil do tratamento de dependentes hoje em dia não é a retirada da droga, mas evitar as recaídas”, reconhece o psiquiatra Dartiu Xavier, coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) da Universidade Federal de São Paulo. As re- caídas sinalizam que algo no processo de tratamento da dependência esta errado ou não foi bem executado. Fazem com que o paciente, a família e o terapeuta ou a instituição pensem nas próprias falhas e comecem tudo de novo.

“Quem usa drogas com frequência pode desenvolver dependência psicológica e/ou fisiológica, ou seja, física”, explica Ruy de Mathis. “Portanto, a droga passa a ter para essa pessoa uma importância muito grande na vida e, muitas vezes, seu organismo também já não pode ficar sem ela. o tratamento deve conseguir quebrar esses vínculos, mostrar que é possível, psíquica e fisicamente, ficar sem a droga. Se houve recaída é porque esse tratamento não foi bem executado”.

O psiquiatra Jorge Figueiredo, da Clínica Vitória, concorda: “Recaídas não fazem parte do tratamento, fazem parte da doença-dependência. Se o paciente volta a usar drogas, é porque algo está errado em seu tratamento, que deverá ser retomado com a devida seriedade”, explica. Essa falha pode estar, por exemplo, numa depressão não- tratada. ” Cerca de 45% dos dependentes têm também um transtorno depressivo”, revela Dartiu. “Se não for medicada essa depressão, mesmo que o indivíduo consiga ficar abstinente, o risco de recaída sera maior”.

Analisar as falhas de cada parte envolvida e reiniciar o trabalho de recuperação são uma “dura – e necessária – tarefa a cumprir. “Todos têm que respirar fundo e começar tudo de novo como se fosse a primeira vez”, diz Ruy de Mathis. “É um posicionamento utópico, mas o mais próximo do ideal para quem não quer recair mais uma vez”.

Embora seja considerada um evento grave e que pode ter um grande impacto no tratamento, a recaída é, sim, muito comum. Segundo Ruy, estima-se que por volta de 6o% das pessoas internadas sofram uma recaída. “No Brasil, não dispomos de recursos financeiros para realizar um estudo sobre isso”, revela Dartiu Xavier. Mas algumas experiências isoladamente dão uma ideia do tamanho do problema: “Na Clínica Vitória, seis entre 1o pacientes sofrem uma recaída. Esses seis, por terem sido conscientizados, retomam o tratamento e, entre eles, dois não vão conseguir recuperar-se”, relata Jorge Figueiredo.

Precisamos ter cuidado, no entanto, com os números, alerta o psiquiatra Pérsio Ribeiro Gomes de Deus, do Denarc (Departamento de Narcóticos). “No primeiro ano de tratamento, os índices ainda são elevados”, alerta. “Mas precisamos acompanhar esses pacientes por, no mínimo, cinco anos, para aí termos certeza de quantos são abstinentes”.

Prevenção

Algumas medidas podem ajudar a manter o dependente longe das drogas. No livro Prevenção da Recaída, Paulo Knapp e José Manoel Bertolate explicam: “A ideia fundamental é a de que a dependência, isto é, a relação afetiva que a pessoa estabelece com o álcool ou a droga é um aprendizado. Quer dizer, a pessoa aprendeu a se relacionar com o álcool ou a droga de forma tão intensa que Ihe parece impossível lidar com a vida se não estiver apoiada pela droga. Então, a jeito e ‘desaprender’ essa relação e reaprender um outro modo de se relacionar com a vida. Portanto, a Prevenção da Recaída é um programa de tratamento que conscientiza a pessoa para antecipar, prevenir, modificar, enfrentar e lidar com situações que a coloquem em risco para a recaída, isto é, situações que façam com que ela volte a consumir álcool ou outras drogas”.

Acura da dependência está, basicamente, apoiada num tripé: psicoterapia, tratamento medicamentoso e abstinência

Essas situações de risco podem ser desde tomar um cafezinho – que, para muita gente, significa vontade de fumar – até conviver com amigos que consomem a droga – os bebedores de final de semana ou mesmo os que consomem psicotrópicos mais pesados. Dependendo do nível de ligação com a droga, pode significar até a necessidade de um afastamento total, mesmo que temporário, ou seja, de internação. “A internação ajuda a manter a pessoa longe do contato com essas substâncias, mas não é incomum que, ao sair da instituição, o paciente receba novamente a oferta, numa festa, por exemplo, e volte a consumir”, explica Ruy. “Pode ser até que troque de vício: deixa de usar crack, por-exemplo, mas começa a beber”.

No entanto, apenas afastar-se da oferta do produto não significa o sucesso do tratamento. Na realidade, a cura da dependência está, basicamente, apoiada num tripé: psicoterapia, tratamento medicamentoso e abstinência. Muito se discute entre os médicos e psicólogos sobre a necessidade desses três “pés”. Há quem defenda até que a abstinência total não é uma condição indispensável. Outros profissionais dispensam, em alguns casos – principalmente naqueles em que a dependência física não é tão forte – o uso de medicamentos, que têm a função de controlar a ansiedade, tratar a depressão e reduzir a sensação de “fissura”, de vontade de usar a droga. Como no tratamento de muitas doenças, na terapia da dependência não há uma solução que funcione para todos, mas o estudo dá melhor estratégia para cada indivíduo.

“A partir de resultados de estudos internacionais”, conta Dartiu, “sabemos que têm mais sucesso os tratamentos que utilizam medicamentos associados a algum tipo de psicoterapia”. No entanto, de acordo com Ruy de Mathis, mesmo quando não se utilizam medicamentos ou mesmo a assistência terapêutica profissional, é possível evitar as recaídas. “Nos grupos de auto-ajuda, como os Alcóolicos ou os Narcóticos Anônimos, há sempre a proteção das outras pessoas e esse acolhimento serve também como um ‘olho-vigia’. Quando o dependente dá sinais de que está inclinado a usar a droga novamente, os outros soam um alarme e mostram a ele o risco”.

Essa “vigia” também pode – e deve – ser realizada pela família. “Na prevenção da recaída, os parentes têm a função de proteção, de manutenção, mas também de vigilância e de autoridade”, explica Ruy. o usuário sempre dá alguns sinais de que tende a recair: as vitórias iniciais perdem importância para ele, como se estivesse com ‘saudade’ da droga, e ele arranja a toda hora justificativas para voltar a usá-Ia”, revela o terapeuta. “É comum até que o sujeito acuse a família de estar desconfiando de sua absti-nência, como se todos duvidassem de sua capacidade. Ele diz ‘vocês me empurraram’ e volta a consumir”.

A instituição de tratamento, seja um ambulatório, seja um hospital, clínica especializada ou comunidade terapêutica tem o papel de ajudar o paciente a enfrentar as piores crises e a orientar o doente e a família. “Ela deve alertar sobre os possíveis erros que podem ser cometidos no processo de recuperação e sobre como evitá-Ios. No caso da recaída, também pode abrir suas portas para a reinternação, caso seja necessária e o estatuto permita”, explica Jorge Figueiredo. “o papel da instituição no tratamento é o mesmo de um bombeiro, de ‘apagador de incêndios’: é passageiro, transitório”, defende Ruy de Mathis. “o mais importante é que ela se preocupe em não co-alimentar a doença, ou seja, que preste a atenção mais isenta e profissional possível”.