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Com a palavra “O chefe da boca de fumo”

Matéria extraída da Revista Droga e Família – Edição 10 – 2001

– Qual é hierarquia no tráfico? Quem manda em quem? Quais são os nomes dos postos e quais as responsabilidades de cada um?
Resposta:  Há o intermediário, o subgerente e o patrão, que é o posto mais alto. O avião só serve para buscar.

– Como se chega ao posto mais alto nessa hierarquia?
Resposta: É difícil. Tem que ser bem “considerado”, cuidar direitinho do dinheiro. Senão a coisa fica ruim …

– Quantas pessoas uma “boca de fumo” emprega?
Resposta: Entre seis e sete pessoas. São três turnos e 24 horas de serviço.

– Como são recrutadas? São treinadas?
Resposta: Geralmente nós já temos informações sobre a pessoa. E quanto ao treinamento, só no dia-a-dia mesmo é que ela vai aprender direito.

– É possível para alguém que trabalha para o tráfico desligar-se do “emprego”?
Resposta: No nosso caso, se a pessoa quiser sair, nós liberamos. Mas tem outros lugares que não liberam, não. E isso é uma encrenca muito grande para quem sair do negócio.

– Em média, qual a idade das pessoas que trabalham para o tráfico?
Resposta: Tem menores trabalhando com a gente, só para você ter uma ideia. A gente não tem essa de idade, não. Precisou do emprego, fala com a gente e esta empregado.

– Eles recebem algum tipo de treinamento para lidar com armas?
Resposta: Não. Geralmente eles já sabem mexer com arma. Quem esta nesse negócio não é bobo, não.

– Como são tomadas as decisões? Há um poder único, uma pessoa só mandando, ou existe uma espécie de colegiado, onde as decisões são tomadas se a maioria vencer?
Resposta: Isso depende do assunto. A gente pode se reunir para decidir alguma coisa. Mas se o assunto for sério, cabe ao patrão decidir. Ele decide e todo mundo obedece.

– Como uma “boca de fumo” se expande? Pela procura dos usuários ou pela tomada de áreas de grupos rivais?
Resposta: Nós aqui crescemos pela qualidade do produto que vendemos. Sem essa de ficar brigando para tomar o lugar dos outros.

– Como são demarcadas as áreas de abrangência de um grupo? Por exemplo, daqui se controla quantas regiões?
Resposta: Controlamos três regiões. Essas demarcações são conhecidas por todos e os grupos se respeitam. Como eu disse ninguém tenta tomar o lugar do outro.

– Você seria capaz de se unir a outros grupos para expandir o negócio?
Resposta: Não. Cada um na sua.

– Aliás, esse negócio é muito competitivo? Quantos grupos desses você estima que haja só na região em que você atua?
Resposta: Esse negócio é muito competitivo mesmo. Nessa região tem muitos grupos disputando com a gente.

– A sua estrutura inclui produção e distribuição ou é só receptação e comercialização?
Resposta: Receptação e distribuição.

– Qual é o faturamento médio de um negócio desse tipo?
Resposta: Não vou falar números, mas posso garantir que é muito dinheiro. Para quem vende, rola muito dinheiro, mas tem que ser assim, né, porque o negócio é muito arriscado. De uma hora para outra você pode perder tudo.

– Como qualquer outro negócio, ele tem oscilações, ou seja, picos e baixas de vendas?
Resposta: Tem oscilações, sim. Há meses que são melhores que os outros, há épocas em que se vende mais.

– Para aonde vai o dinheiro arrecadado?
Resposta: Para comprar mais mercadoria e repor estoques.

– O mundo empresarial, por ser muito competitivo, obriga as empresas a procurar alternativas, modos diferenciados de atender ao cliente. Existe isso no tráfico? Algo assim como entrega em domicílio ou um disk-drogas (esse último serviço é oferecido atualmente nas ruas de Nova York depois que a polícia expulsou os traficantes das ruas)?
Resposta: Não, aqui não existe isso. Quem vende a droga somos nós mesmos e a pessoa que quer tem de vir procurar com a gente. Não entregamos na casa de ninguém. Não precisamos disso.

– Você acha que se o usuário final deixar de se drogar, o negócio drogas pode perder poder ou, preparado para isso, diversificará as atividades?
Resposta: Não sei dizer. A pessoa que quer largar a droga tem de ter força de vontade. Vem até a gente quem quer comprar e se drogar. Nós não obrigamos ninguém a nada.

– Com que outros tipos de negócios você lida? Armas, contravenção, prostituição?
Resposta: Venda de armas. Prostituição não.

– Você acha que essas atividades têm relação com drogas?
Resposta: Sei lá. Acho que é cada um na sua. Se o cara acha que tem que fazer contravenção e prostituição é problema dele.

– Como é vendida a droga? A pessoa simplesmente sobe o morro, procura a favela ou a droga é oferecida em pontos estratégicos?
Resposta: Ela tem que conhecer os intermediários, a pessoa que vai Ihe fornecer a droga. Se uma pessoa que nunca foi numa boca subir sem conhecer os intermediários, ela desce e vai embora sem a droga. Dependendo do lugar, é perigoso nem descer. Tem lugar que é assim. Se o cara é estranho e não está acompanhado por alguém do morro, pode se dar muito mal.

– Qual é a droga mais procurada na sua região e qual é o perfil das pessoas que a adquirem?
Resposta: Nós vendemos mais crack. Depois vem a erva e a cocaína. Todo tipo de gente procura o morro.

– Como é o enfrentamento com a polícia? Ela faz buscas de fato ou encena tudo?
Resposta: Ela faz busca mesmo. É a fim de encontrar qualquer coisa. Por isso que o negócio tem de ser bom, porque como eu disse, de uma hora para outra você pode perder tudo. Se a polícia encontra droga eles levam ou, dependendo do policial, tem um acerto ali mesmo.

– Acerto? Que tipo de acerto? A polícia é corrupta?
Resposta: Acerto é acerto. A gente dá alguma coisa e a droga não é levada. Mas nem todo mundo da polícia é assim. Com a ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, tropa de elite da polícia militar), por exemplo, não tem negócio. Se eles pegarem, eles levam.

– Na sua opinião, por que é tão difícil para o poder público combater o tráfico?
Resposta: Não sei dizer. Talvez a situação econômica do País. Tem gente que procura emprego, não acha, vem para o tráfico. E isso torna difícil o combate, eu acho.

– Por que o Rio fica na alça de mira da mídia e São Paulo nem tanto?
Resposta: Eu acho que o pessoal de São Paulo é mais sossegado, não tem tanta briga pela posse de pontos de drogas como no Rio.

– Vocês mantém algum tipo de ligação com cartéis internacionais de drogas?
Resposta: Não. Vem tudo com sexta mão, a gente não pega direto do primeiro fornecedor.

– Quer dizer que a droga quando chega até você já passou por pelo menos seis pessoas?
Resposta: Às vezes mais. Chega a dez.

– Esses cartéis colombianos, e agora os mexicanos, possuem uma estrutura profissional mesmo ou é só marketing?
Resposta: Eles são organizados mesmo. São profissionais.

– Como é o relacionamento de vocês com a comunidade? Há respeito, medo, indiferença…
Resposta: Todos sabem o tipo de negócio em que estamos metidos. E respeitam. Temos amizade com todo mundo e ajudamos a comunidade no que ela precisa e no que podemos. Em outros lugares isso não existe. Os caras apavoram as pessoas.

– Que tipo de armas vocês portam?
Resposta: Todo tipo de arma: AR-7 51 mini-Uzi, Colt 451 PT-57. Armas pequenas, grandes, até granada.

– O “serviço secreto” do tráfico como funciona? Há informantes em pontos e postos-chaves fora da área do tráfico?
Resposta: Sempre tem. Temos que ter. Existe sempre uma pessoa que fica de ouvido e olhos abertos e avisa quando a polícia chega.

– Como são remunerados? Aliás, são bem remunerados?
Resposta – Eles ganham bem. Mas não só eles. O intermediário, se quiser – e ele geralmente quer – pega seu salário em mercadoria. Dependendo do mês, um olheiro, por exemplo, que fica de “butuca” pode tirar muito mais que 2 mil reais.

– E quem não paga como é tratado?
Resposta: Tem grupos por aí que matam. Nós não. Nosso negócio é ganhar dinheiro mesmo. Se o cara deve, a gente faz o possível para receber. Fala para o sujeito dar um jeito, roubar alguma coisa ou alguém. Nós damos todas as chances porque se a gente matar, aí é que não vai receber mesmo. Agora, se não houver jeito mesmo, se a gente sentir que o cara quer “dar um chapéu”, aí o jeito é apagar o cara.

– Na sua opinião, o tráfico de drogas tem realmente o poder de substituir os poderes constituídos?
Resposta: O tráfico é muito poderoso. Pode sim substituir esse poder constituído que você fala. Tem dinheiro, tem armas, tem mercadoria, tem tudo…

– Você acredita no arrependimento de pessoas que por anos traficaram e agora se dizem regenerados como o Escadinha e o João Gordo, só para citar grandes traficantes do Rio?
Resposta: Não. É meio difícil sair dessa. Eu não acredito nesses caras.

– Você usa drogas?
Resposta: Não. Eu só gerencio o negócio.

– Como você entrou para o tráfico e como chegou a ocupar o posto que ocupa hoje?
Resposta: Foi muito tempo atrás. Eu sou um profissional e demorei muito para chegar aonde cheguei. Passei por todos os estágios, dei duro e hoje sou o que sou.

– Quanto você ganha nesse negócio?
Resposta: Ganho muito dinheiro.

– Qual foi o patrimônio que você conseguiu erguer desde que entrou para o tráfico?
Resposta: Consegui muita coisa.

– Você tem vida fora do tráfico?
Resposta: Tenho um “comercinho”.

– Há espaço para amizades no negócio das drogas?
Resposta: Não sei quanto aos outros. Eu tenho amigos.

– Aonde você pretende chegar “trabalhando” nesse tipo de negócio?
Resposta: Eu cheguei até aonde dá, mas quero mais. Sempre há algo para se conseguir nesse ramo.

– Pessoalmente, como você se sente sabendo que o seu tipo de negócio destrói pessoas, lares e futuros profissionais? Você chega a pensar nisso ou nem pensa, porque isso atrapalha o negócio?
Resposta: Olha, eu já vi pessoas que compraram drogas comigo e morreram de overdose. Mas isso é problema do cara. Uma pessoa eu até ajudei a levar para o hospital. Se droga quem quer, eu estou aqui para fornecer.

– Você recomenda esse tipo de negócio para outras pessoas? Pessoalmente, você introduziria alguém da sua família nesse negócio?
Resposta: Não, não recomendo.