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Dor de Pai

Em um único dia, Fábio tentou o suicídio quatro vezes; passou por quatro hospitais psiquiátricos e um centro de recuperação; virou de pernas para o ar o ambiente familiar e perdeu anos na escola; encontrou Deus, recuperou-se e voltou a ser o filho carinhoso que sempre fora.

Como acontece com a grande maioria das famílias, as drogas entraram na casa do oftalmologista Luiz Ossamu Sanda pela porta dos fundos, de modo insidioso. Quando ele e Dona Mirtes perceberam, o filho Fábio, então com 18 anos, já era vítima do crack. Maus tarde, conversando com o rapaz, souberam que, na verdade, as drogas devastavam a personalidade e o organismo de Fábio há pelo menos cinco anos, época em que fumava maconha. Droga ponte, como muitos especialistas dizem ser, a maconha levou Fábio a outras drogas e ele mergulhou no crack com o mesmo senso de aventura. Só que o crack, destruidor e capaz de levar à dependência quase que imediatamente, foi o inferno para Fábio. “Durante alguns meses eu e minha esposa suspeitávamos que alguma coisa estivesse errada com ele”, relembra Sanda. Foram pequenos sinais que, no conjunto, diziam o que assolava o rapaz.

Os objetos encontrados pela casa ilustravam um pouco do drama. Piteiras e cachimbos de crack, por exemplo. Os sinais físicos também. Emagrecimento e unhas amarelas. Logo, o caráter de Fábio, sua personalidade, seu estilo de vida foram moldados pela droga. “Não conhecíamos nada sobre drogas e não sabíamos que aqueles indícios indicavam seu uso”, assegura o médico. A constatação veio de forma inconteste. Dona Mirtes flagrou Fábio usando crack dentro de casa. Não havia mais como negar. E a atitude que norteou o comportamento da família foi exemplar. Em vez de ficar procurando falhas da educação, em vez de ficar lamuriando a vida e a sorte, fatos muito comuns em qualquer família que descobre um drogadependente em seu meio, Sanda deixou qualquer tipo de recriminação de lado e se voltou para o que realmente interessava: a recuperação de seu filho.

O Calvário das Internações

Esse voltar-se para o agente central do problema foi imediato. Fábio foi flagrado usando a droga no dia 08 de outubro de 1995. No dia 09, Sanda e Dona Mirtes já procuravam se informar quais os locais onde Fábio poderia ser ajudado. No dia 15 estava internado. “Eu tenho sido um pai bastante enérgico; uma vez que tomamos conhecimento do fato, disse ao Fábio que tinha duas opções: ou se tratar num hospital psiquiátrico ou em comunidade terapêutica; ele disse que preferia um local fechado, só que nem ele e nem nós sabíamos o que era um hospital psiquiátrico”, diz Sanda. A descoberta de como funciona um hospital psiquiátrico que procura lidar com a drogadependentes foi dramática. Sua primeira internação, em 15 de outubro de 1995, foi no Hospital Psiquiátrico da Água Funda, em São Paulo. E aí começou o calvário. Os hospitais psiquiátricos públicos estão desaparelhados para tratar drogadependentes. Isso ficou patente quando Fábio foi colocado no mesmo pavilhão dos doentes mentais, psicóticos, esquizofrênicos e outros pacientes portadores de severas patologias psiquiátricas. “Não existe um pavilhão específico para drogadependentes”, afirma o médico. Deslocado, sem a assistência necessária, confuso, tratado da mesma forma que os demais pacientes psiquiátricos, Fábio resistiu uma semana. Fugiu e voltou para casa. No dia seguinte, estava itnernado novamente, em outra clínica psiquiátrica particular. “Dessa vez, buscamos a assessoria de um psiquiatra que se dizia especialista em drogadependência e que ficou assessorando um processo de internação”, explica o médico. Ambiente fechado, vigilância constante. Mesmo assim, depois de 20 dias, Fábio conseguiu fugir. E voltou para casa.

Encontro com a Recuperação

A história se repetiu. A terceira internação se deu novamente numa clínica particular, mas desta vez Sanda procurou se precaver. Contratou os serviços de um segurança que vigiava Fábio 24 horas por dia. A essa altura, o desequilíbrio emocional que abalava os alicerces da família atingiu os pilares financeiros também. Para manter Fábio distante das drogas, internando-o nessa clínica com guarda, Sanda gastava 400 reais por dia. “Em menos de 20 dias eu tinha gastado com ele a quantia de 10 mil dólares”, observa. Vinte dias foi o período preconizado pela instituição para a desintoxicação. Ao fim desse período, ele teve alta médica e voltou para casa. Acompanhava-o o gurada que o vigiara na clínica, destacado para a residência da família a fim de continuar a vigilância sobre Fábio. Entretanto, ele teve uma seríssima crise de abstinência que desencantou a família no que tange aos tratamentos prescritos por clínicas psiquiátricas. Mesmo assim, uma quarta tentativa com hospital psiquiátrico foi feita. Fábio foi internado no Hospital Psiquiátrico Teixeira Lima, de Sorocaba, São Paulo. Mais tarde, Sanda viu que acertou a cidade, não a instituição. No Teixeira Lima, Fábio ficou internado 5 dias. E nesses cinco dias, fugiu duas vezes. Foi o fim. Para hospital psiquiátrico, Fábio não voltaria mais. “A partir dessa fuga, procuramos nos orientar com pessoas que conheciam o regime de comunidades terapêuticas e fomos instruídos a procurar o Esquadrão Vida de Sorocaba”, afiança o médico. O dia 25 de novembro é um marco na vida da família de Sanda. No período entre outubro e novembro, Fábio passara por quatro internações psiquiátricas, fugira diversas vezes e tivera uma crise de abstinência muito séria. Naquele 25 de novembro foi internado no Esquadrão Vida, de onde só sairia… para a vida.

A Perda dos Valores

Uma olhada no passado da família e um trauma vivido por Fábio pode dizer um pouco do porquê incursionou o mundo das drogas e dele quase não consegue sair. Em 1988, acompanhava a irmã menor num passeio e, ao tentar atravessar a rua, viu, impotente, a irmã ser atropelada e morrer. O trauma instalou-se de tal modo na vida de Fábio que pode ter originado um sentimento de culpa e autopunição que encontrou seu modo de expressar nas drogas. Pode ter sido isso. Além do potencial genético herdado e dos fatores ambientais e comportamentais, a dependência química pode ter origem num trauma. Surtos psiquiátricos acontecem diante de traumas, e a dependência química, categorizada como doença psiquiátrica, pode se manifestar dessa forma. “Nós nuca o culpamos pelo fato; mas acredito que ele nunca se perdoou por não ter podido fazer nada”, acredita Sanda.

De amigo, companheiro, carinhoso, de fácil relacionamento, prestativo e de aparência suave e bonita, Fábio passou a ser uma pessoa distante, apática, irritadiça, egocêntrica, de aparência desalinhada e hábitos desregrados. O crack lhe consumia as energias, o orgulho e a moralidade. Droga amoral, como rotulam vários especialistas (ver “Uma carreira cheia de pedras”, nesta edição), o crack promove em sua vítima uma reconceituação de valores e relativiza certo e errado, bom e mau. Fábio não chegou a roubar na rua, mas transformava em droga tudo o que podia. “Tênis e roupas não paravam no corpo dle”, lembra Sanda. A agressividade, uma característica que nunca habitou o acervo comportamental do garoto, passou a ser presente. “Ele chegava a dar cabeçadas em objetos e paredes quando ficava contrariado”. De formação espiritual evangélica, Sanda acredita que maus espíritos atacavam Fábio e impediam sua recuperação.

Três Tentativas de Suicídio

Mas o que mais impressionam na história de Fábio são os episódios de tentativa de suicídio. Durante um período em que ficou internado em uma das instituições buscou dar cabo da própria vida pelo menos três vezes, no mesmo dia. Numa das tentativas de pôr fim ao inferno que lhe consumia a alma, Fábio pulou o muro de sua casa e saiu correndo por uma avenida movimentada, no contra-fluxo, no intuito de ser atropelado. Foi salvo por uma alma caridosa que viu seu estado de absoluto desespero e o retirou da rua. De outra feita, se atirou do telhado de casa. Por mais que a ciência médica admita que tentativas de suicídio em quadros de drogadependência sejam presumíveis, buscar a morte por quatro vezes no mesmo dia indica um grau de sofrimento inatingível por quem nunca passou por isso. Para fugir da realidade mentirosa das drogas, Fábio admitia deixar tudo: família, amigos, ambições.

Doente como Fábio, a família de Sanda procurava meios de se adequar à nova triste realidade. Essa adequação contemplava juntamente com a busca de soluções, uma melhor compreensão do problema. “passamos por tudo”, lembra Sanda. “Tivemos medo, revolta, insegurança; no princípio, o clima ficou pesado; mas depois percebemos que tínhamos que amar o Fábio, independente do estado em que ele se encontrava, porque o maior medo do drogadependente é o de que, uma vez descoberta sua dependência, a família passe a não mais amá-lo”. Sanda teve problemas com o comportamento de um dos filhos que não administrava muito bem o problema do irmão. Os especialistas afirmam que isso é até natural, pois os irmãos vêem que apesar de fazer tudo direitinho, a atenção especial dos pais recai sobre o dependente; o que não entendem é que ele está numa fase especial, triste, mas especial e merece uma atenção maior.

A Efetiva Restauração

Naquele 25 de novembro, quando Fábio deu entrada no Esquadrão Vida, começou a recuperar a sua vida a prestações. E a fatura foi liquidade depois de 17 meses. Nesse período, ele atravessou todos os percalços vividos pelo dependente químico confinado. Tentou manipular a família para sair, mas tanto Sanda como D. Mirtes mantiveram-se firmes, certos de que saída antecipada seria precipitada e precipitante do retorno aos tristes dias de dependência de outrora. Na comunidade, ele pôde recuperar o sentido de Deus e manifestou viva confraternização espiritual. Reaprendeu os valores desprezados, a valorização da espera, a disciplina, a gratificação de encontrar prazer em coisas que antes só tinham sentido quando a droga agia. Aprendeu a olhar para si mesmo e se valorizar, recuperando algo há muito perdido na fumaça emanada do crack: a auto-estima.

Sanda se alegra quando diz que Fábio, desde que saiu da comunidade (em 1997), nunca mais voltou a usar drogas. De um grupo de seis garotos que saíram da comunidade com ele, apenas Fábio e mais outro recuperante não voltaram para as drogas. “Ele voltou a estudar e está num estágio que eu considero fase final de restauração; de 0 a 10, tendo zero como escala inicial de recuperação, eu diria que ele está no grau 7”. O médico defende a mesma certeza estabelecida por vários profissionais da área: fora do ambiente comunitário é que começa verdadeiramente a luta contra as drogas. “Tirar a droga da vida das pessoas não é difícil”, diz Sanda. “O complicado é trabalhar o caráter que pode estar ainda povoado por mentiras, manipulações, rejeições e culpas”. A família, nesse caso, também tratada, precisa dar o suporte emocional necessário, a fim de que as drogas sejam definitivamente banidas da vida de todos. José Antonio Mariano

FALTAM FORMAÇÃO E INFORMAÇÃO

Formado em 1970, pela Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo, o Dr. Ossamu Luis Sanda sofreu na pele a dor da discriminação por ter um filho dependente químico. “Você se abre com o seu melhor amigo sobre isso; ele o ampara, apóia, volta para casa e diz ao filho que está proibido de sair com o filho do Luis”, exemplifica. “O pior é que ele está certo; não pode expor o filho”, acredita. Para ele, muita coisa está errada no tratamento dispensado tanto ao dependente como à família. Os pais sentem-se imensamente culpados, buscam no passado fontes de eventuais erros na educação e coisas do tipo. Quando procuram ajuda, não raras vezes, encontram alguém que vai forçar essa culpa, com tiradas do tipo “também, do jeito que você criou, só podia dar nisso mesmo!”.

Os pais precisam de um apoio efetivo e constante. “Eu digo sempre que quando internamos um dependente químico, o ideal seria que internássemos também a família, porque ela está tão doente quanto”. Sanda acredita na informação pois, para ele, os pais estão muito mal informados, apesar da abundância de materiais que cotidianamente despencam sobre eles. “Eu mesmo não entendia muito, mesmo sendo médico; e fui obrigado a estudar”.

Sanda fala dos pares. Ele acha que a medicina atual está despreparada para lidar com o tema e saca um percentual para confirmar isso. “Apenas 5% dos psiquiatras e psicólogos brasileiros conhecem, de fato, dependência química”. O que falta, então? “Constituição de curso universitário como existe no Chile, na Argentina, Venezuela, Colômbia, por exemplo”.